A pulga atrás da orelha. Graças à hipervigilância. Os olhares deles, cúmplices, todos. Perceber que fui enganada. Perguntar, dar aquela chance, não tem nada errado. A inquietação, a insistência, algo não tá certo, conta a verdade. A mentira confirmada. Meses de segredos, mais segredos, mais do mesmo. Quero ir pra casa, não, não vai, fica, dorme aqui, como se ficar me fizesse esquecer. Barrando a porta, me impedindo de ir embora, me prendendo e me abraçando, porque ele era minha dor e meu conforto, tudo o que eu precisava, porque aquela violência era só mais uma, a realidade que eu conhecia. Me dizendo pra não gritar, me obrigando a sussurrar em desespero, eu quero ir embora, eu quero ir pra casa, chorando de soluçar. Não, fica. Chorar nos braços dele até dormir, presa. Pelo menos não sozinha. O rosto inchado pela manhã. Mulher agredida por homem em um vídeo. A gente não sabe o que ela falou pra ele reagir assim. Não é fácil gostar de ti. Por que tu não faz o que eu peço? Violência atrás de violência, histérica, vigiando, invadindo a privacidade alheia pela paranoia de ser enganada, e sempre confirmando a paranoia como realidade. Então por que voltar? Por que pedir ajuda de novo? Preferia que tu estivesse terminando comigo porque tem outra pessoa. Se não tem, é pior. Me impedindo de entrar no táxi. Entrando sem ser convidado, me obrigando a enganar pra poder fugir. Torpor. Uma semana igual a outra. Compulsão. Acreditar que eu mereci e que foi minha culpa. Acreditar que terminei porque tinha algo errado comigo. Ser a pior versão de mim. Os ingressos de cinema que eu não deveria ter achado. As mentiras mal elaboradas. Os cupcakes de dia dos namorados e o nó na garganta. As trocas de mensagem. As pantufas de tubarão, fofas, né? A gente precisa terminar. Soco na parede. Por que pedir ajuda depois? Por que voltar? Pra isso posso confiar nele, sim, nisso ele não me enganaria. Ele me deve. Não vê mais utilidade, responde com frieza. O que eu tô fazendo? Por que eu continuo voltando? Dez, doze anos passaram. É difícil gostar de ti. Uma tentativa de amizade. Quer dormir comigo no quarto? Não. Assalto à mão armada, medo de sair sozinha, tremendo só de pensar. Que bobagem, todo mundo passa por isso. Nunca passou. Chorando trancada no banheiro. Por que tu é assim? Entendo o Ted Bundy. Percebeu que falou a coisa errada. Pavor de estar ali. Lembrando da raiva jogando o chinelo. Lembrando da naturalidade diante da agressão. Choque. Quantas violências até que. É difícil se soltar. Perceber.
Pra quem conhece Sally Rooney, não preciso explicar muito o que fiz ali em cima. Li ela pela primeira vez e fiquei encantada com o tipo de narração. Acho que esse estilo combina com a narração do trauma, com esse fluxo de pensamentos inconstantes que oscilam entre passado e presente. É difícil elaborar sobre o trauma, falar dele. Falar ajuda, mas não uma vez só, nem duas. Talvez a gente tenha que reelaborar o trauma dezenas de vezes, olhar pra ele e tentar entender quem nós somos depois de passarmos por uma violência, então não importa se passaram 2, 10, 15 anos. Porque como disse Vanessa, o trauma é uma cicatriz. O que aconteceu pode ser esquecido por todo mundo, menos por quem sofre as consequências de um abuso pelo resto da vida. A mente oscila entre passado e presente, volta pra um estado de dependência e continua tentando entender o que aconteceu, como existir, o que se sente.
Sobre o texto: a Sally não marca os diálogos com pontuação tradicional (aspas, travessões) e muitas vezes não fica claro no início da leitura o que é fala de alguém, do próprio personagem, ou um pensamento. A mistura, pra mim, pareceu funcionar bem pra falar da vivência do trauma. Ainda que alguns personagens de Intermezzo não sejam tão fáceis ou agradáveis de ler (o impopular Peter), é uma obra que vale a pena ser analisada do ponto de vista narrativo.
Obrigada, Sally, por me mostrar uma forma de narrar que me permitiu botar pra fora a angústia do trauma. Vanessa, agradecer me parece estranho, mas obrigada pela coragem. Ler o que você passou me entristece ao mesmo tempo que me dá coragem pra também bater de frente com o meu passado.
Essa é minha primeira postagem. Nas próximas, quero trazer resenhas, falar de livros e literatura, recomendar leituras, escrever sobre o que já cicatrizou.
Um de cada
Um livro: Intermezzo.
Um podcast: CPF na nota?
Uma música: Breezeblocks, por Alt J.
Um texto:
Perfeito amiga!
Ótimo texto, parabéns!