Era um dia frio, e ela não tinha nenhuma roupa apropriada. Saíra às pressas de casa, uma mala e os dois gatos, sem certeza de quando voltaria para casa. Fazia calor na cidade quando partiu e, incapaz de pensar a longo prazo, focada apenas no agora e no sobreviver, juntou suas camisetas e calças favoritas, colocou os gatos nas caixas transportadoras e desceu para entrar no carro que a esperava.
As cinco horas de viagem foram angustiantes — os gatos não estavam acostumados, miavam e tentavam sair das caixas, arranhando, revoltados e indignados com aquele enclausuramento prolongado. Cada miado aumentava cada vez mais a sua angústia e a viagem se tornou uma tortura. Mal conseguia falar com o motorista de tão preocupada que estava de estressar os dois bichos e eles ficarem doentes quando chegassem. Para os gatos, não esquecera nada: trouxera ração, os potes, até mesmo o túnel de brinquedo. Mas as roupas de frio, bem, ela realmente não tinha se dado conta de que precisaria. Só tinha pensado em ir para um lugar seguro.
Então ali estava ela, em um sobrado vazio, um dos dois gatos com medo do ventilador de teto e uma mala cheia de roupas frescas em cima da mesa de jantar. Esfregou os braços e subiu a escada de madeira para o segundo andar. A mãe dissera que tinha roupa de cama e que ela poderia trazer o colchão da cama de casal para o pavimento inferior, era melhor dormir lá do que no quarto — os cupins estavam por todo o lugar lá em cima.
Sozinha, tirou o pesado colchão da cama e deslizou ele pelo corredor, pelas escadas, até o pavimento inferior. Encontrou as roupas de cama, mas não tinha nenhum cobertor capaz de lhe aquecer nas noites frias que viriam. Ajeitou seu quarto-sala e ouviu os primeiros pingos de chuva começarem a bater no telhado de zinco. Não tinha trazido casacos ou pijamas para enfrentar aquele tempo. Sem falar da ventania que fazia na praia, e eventualmente precisaria sair de novo para fazer compras. Além disso, a casa era gelada. Era melhor sair logo. Já tinha ido ao mercado mais cedo, mas a temperatura baixaria muito à noite, era melhor não adiar essa tarefa.
A tarde estava fresca e havia poucas lojas abertas na rua principal, um grande eixo que ligava aquela praia às praias vizinhas. Entrou na primeira loja de roupas que encontrou, afinal, não tinha muitas opções. Um blusão e um conjunto de calça e casaco seriam o suficiente? Teriam que ser, não tinha muito dinheiro guardado. Experimentou, decidiu, pagou e seguiu para comprar o pijama em outra loja. Além de um pijama com o Garfield e o cachorro que esquecera o nome estampados, comprou também uma cobertinha daquelas macias, senão provavelmente passaria a noite tremendo. Se xingou mentalmente pela mala ridícula que fez e pagou pelos itens, espiando uma pantufa felpuda na saída. Hesitou em comprar — não sabia quanto tempo ficaria, talvez pudesse retornar na semana seguinte, e em casa tinha uma pantufa.
Ao voltar para o sobrado, os gatos a esperavam à porta. Estavam ainda um pouco assustados, confusos, e o ventilador apavorava o gato cinza, que passava correndo toda vez que tinha que atravessar da sala até o cômodo envidraçado da frente da casa ou vice-versa. Após dez minutos tentando explicar ao gato que não era necessário ter medo, desistiu e foi tomar banho. Ficou grata por ter lembrado de trazer produtos para cabelo, um gasto a menos. Gostava de sentir o cheiro de cada produto — o doce do xampu, a fragrância do sabonete, o cheiro floral do condicionador. Não tinha trazido o secador de cabelos, só podia rezar na esperança de que os cabelos úmidos não induzissem uma crise de amigdalite. O chuveiro era bom, aquecia bem, ao contrário do que tinha em casa. Pensar no seu apartamento a fez respirar fundo e sentiu os olhos encherem d’água.
Deitou cedo no colchão da sala-quarto, em meio a lágrimas, com um documentário qualquer ao fundo. Estava ali já há três dias, sem previsão de retorno para a sua cama, para o lar que tinha acabado de começar a construir. As notícias do que estava acontecendo no estado eram devastadoras, não havia otimismo em nenhuma previsão: a água demoraria para baixar, e não seria pouco. Apesar de saber que seu apartamento estava seguro, que a água não tinha chegado lá, não conseguia deixar de pensar no parque favorito, submerso; nas pessoas perdendo móveis, casas; nos animais sendo deixados para trás; no cavalo no telhado; no cara que veio de jet-ski salvar pessoas; nas pessoas que resgatavam animais de dentro das casas; na vida, que nunca mais seria a mesma.
Precisou tomar duas latas de cerveja para pegar no sono.
No dia seguinte, acordou mais uma vez com o gato cinza mordendo sua panturrilha como um convite à brincadeira. Dificilmente o contrariava — era bom, assim podia acordar cedo e começar a colocar em ordem tudo o que tinha deixado em suspensão nos últimos dias por causa da falta de luz e da viagem. Então viu uma notificação no celular: lançamento de um clipe de um artista que amava. Tinha colocado na agenda semanas antes. Sentiu um aperto na garganta.
O clipe tinha saído de madrugada, então já estava disponível no YouTube. Brincou um pouco com o gato, preparou um café da manhã simples, com pão com margarina e capuccino — cortesia do irmão do seu padrasto, que vivia algumas quadras dali e tinha preparado o sobrado e comprado algumas coisas antes da sua chegada. Sentou no sofá, selecionou o YouTube na smartTV e digitou o nome da música. Play.
O prato foi pousado no colo e o café colocado na mesinha ao lado do sofá. Só tinha atenção para a tela, seus ouvidos tomados pela música. Aumentou o volume. O artista encarava a câmera enquanto um violão acústico tocava suave, junto a um assobio no fundo, um conjunto harmonioso. Fazia com que pensasse em veludo, em maciez. As lágrimas não esperaram a voz do cantor, elas caíram enquanto a câmera se afastava do rosto dele, envolto de pessoas, e mesmo assim parecendo solitário. Esqueceu de respirar, encantada, feliz, arrasada. Mesmo que se sentisse completamente desamparada, que visse seu estado afundando, submerso no desastre, e talvez justamente por isso, não conseguia evitar enxergar beleza naquele momento. A união da melodia e das imagens era como um abraço, um lembrete que confortava e devastava: ainda há beleza, mesmo que meu mundo esteja desabando.
Come back to me like you used to
Now I could see what a life is about
I told you I'm fine tonight, staying good
Spring's always been here, I will sleep in her eyes
Chorou mais, de soluçar, agarrando-se à música, à voz dele, à melodia, às imagens e a todas as vidas que o personagem vivia, confuso, correndo entre cenários. Vidas que poderia viver, que talvez tivesse vivido, ou que jamais teria a chance de viver. Ela estava aos prantos, triste e feliz, mas acima de tudo atravessada por uma convicção: A vida ainda é possível; se a arte existe, a vida pode e deve continuar.
Não sabia como continuaria, era verdade. Não tinha perspectiva de retorno para casa, e não fazia ideia de que demoraria um mês para deitar na própria cama de novo. Naqueles cinco minutos em que ficou imersa na música, deixou de pensar no medo do futuro. A imersão no presente era um presente para si mesma. Pensou somente no amor que tinha pela arte, pela vida com a arte, em como a música e a literatura e o cinema e a pintura e tudo o que o ser humano era capaz de fazer para se expressar era essencial para a vida. Para que quisesse mais, apesar do medo. Para que continuasse, apesar da dor.
Pegou o controle remoto, selecionou replay.
Faz um ano que o Namjoon lançou Come Back To Me. RPWP é um álbum que me traz muita paz, apesar de ter sido lançado em uma época bastante difícil em 2024. De qualquer forma, recomendo: Right People, Wrong Place. A música do conto é Come Back to Me, e esse é o MV. Fotos que ilustram esse conto:

O que achou do conto? Adoraria saber a sua opinião. Tenho planos de lançar outros nesse estilo. Vou escrever outras coisas também. Eu acho. Essa newsletter é meio inconstante, eu sei, mas isso faz parte do meu processo.
E sobre processos, recomendo acompanharem a
, em especial a news O processo começa antes da decisão.Abraços e até a próxima *⸜(。˃ ᵕ ˂ )⸝♡ꕤ*
Foram tempos difíceis que ainda reverberam de uma forma que só percebemos parcialmente. As fotos estão ótimas é são respingo de esperança pra esse texto que machuca e machucou tanto. Parabéns por ter passado por mais essa, minha amiga. Você é foda!