Era sábado à noite quando decidi testar meu forno mais uma vez para garantir que não estava estragado. Isso costuma funcionar com algumas coisas: um telefone novo que parou de funcionar e, quando a gente testa, anos depois, ele liga normalmente; um tablet antigo que depois de 8 anos parado volta à vida etc. Pensei que, talvez, eu tivesse testado errado da última vez, duvidando da minha memória e das minhas habilidades em girar um botão e riscar um fósforo.
Uma nova tentativa foi feita: girei o botão, mantive ele pressionado, risquei o fósforo e… funcionou. Meu coração se encheu de alegria: vi as chamas, vivas, radiantes, amarelo da cor da esperança (o primeiro indício de problema que eu decidi ignorar. Parecia tudo certo, então decidi fazer pão no dia seguinte.
Desliguei o forno e pus a mão na massa — literalmente. Desde que escrevi um personagem padeiro, tenho feito pão de tempos em tempos, uma atividade que me acalma, que me coloca no presente e que eu estava há muito tempo sem fazer, pois por um ano eu achei que meu forno estava estragado (atenção, por favor). No meu entusiasmo, decidi ignorar que às vezes o telefone ressuscitado volta a morrer dois dias depois, que o tablet geralmente volta a funcionar com bateria viciada e que as chamas amarelas podem ser indício de um problema. Então domingo de manhã acordei às 6h, animada pra assar meus pães.
Enquanto esperava os pães assarem, me vesti, fiz meu café da manhã, comi na cozinha e depois de uns 15 minutos, sentei na minha escrivaninha na sala pra trabalhar. Meu apartamento é pequeno, então eu estava a literalmente dois passos da porta da cozinha. Era um horário em que mal havia sons do lado de fora, eu só escutava os pássaros, então decidi (sabiamente) abraçar a serenidade da manhã de domingo. Abri meu trabalho de revisão atual e, logo depois, escutei um barulho anormal. Sabe quando você está cozinhando algo e um ventinho que apaga algumas das labaredas da boca do fogão? Nesses casos, às vezes as chamas remanescentes acendem o gás novamente e não há problema nenhum. Na minha situação, no entanto, era que apenas o forno estava ligado.
Levantei da cadeira e parei na porta da cozinha.

Isso mesmo, o forno estava em chamas.
Meu primeiro reflexo foi correr e desligar o forno, e que funcionou pra apagar o fogo de dentro do forno (uhu!!), mas aí percebi algo que fez meu pânico aumentar: o fogo não tinha apagado completamente e agora estava bem vivo na parte de trás do eletrodoméstico, subindo e se aproximando da mangueira por onde fluía o gás encanado. Como a cozinha é compacta, meu fogão fica num nicho na diagonal, entre o balcão da pia e a geladeira. A porta do forno não abre completamente por causa dos móveis que ficam do lado do fogão, e a mangueira de gás fica atrás dele, naquele momento sendo barrada pelas chamas.
Muita coisa se passou na minha cabeça: os extintores não estavam no corredor no dia anterior e os segundos que eu gastaria pra correr e desligar o gás no registro do corredor poderiam ser preciosos, cada segundo contava.
Eu fiz, então, o que qualquer pessoa idiota e mal instruída sobre fogões em chamas faria: peguei uma garrafa de água que estava em cima da pia e joguei em cima do fogo. Nada aconteceu. Abri a geladeira, peguei o galão de 2 litros e joguei toda a água pela parte de trás, por cima, pela parede, por tudo. Por um milagre, isso funcionou, mas essa é a pior atitude que pode se tomar e imagino que muitos de vocês saibam que não se apaga fogo em fogão com água, mas sim, abafando as chamas, de preferência com toalhas molhadas para não espalhar possíveis líquidos inflamáveis. Além disso, as chamas amareladas já eram um aviso: pode ser que tivesse muita fuligem ou gordura dentro do fogão e que a regulagem do gás não estivesse certa, motivos que fazem a cor das chamas variar, então a nota mental agora é: se as chamas não estão azuis, fique atenta.
Contei a história pra alguns amigos e muitos deles reiteraram a técnica correta de apagar incêndios em fogão, e meu pai, inclusive, disse que um amigo dele tinha morrido exatamente assim. A vontade depois foi a de fazer uma camiseta escrita “sobrevivi”. E essa é a sensação mesmo, mas não só porque tive sorte na hora de apagar o fogo, mas porque o barulho discreto da chama oscilante despertou em mim um alarme antes que a situação estivesse fora de controle e um acidente maior acontecesse, e devo isso a uma velha companheira: a hipervigilância.
Viver com hipervigilância é tipo ter um “sentido aranha”, só que sem todos os outros poderes divertidos que viriam junto com a picada de aranha radioativa.
Quem tem essa condição escuta barulhos e presta atenção a movimentações que a maioria das pessoas não notam. Só que é diferente de ser uma pessoa atenta. No estado hipervigilante, é como se você estivesse sempre no meio de um incêndio, em um lugar em que as chamas não alcançam — mas podem alcançar, e pra evitar isso você precisa ficar atenta a qualquer modificação no ambiente. É um estado de atenção constante, e ele é agravado pelo estresse.
Viver assim é estar em um constante “survival mode”: tudo é uma potencial ameaça e a pessoa nunca sente que está segura. Eu vivo com essa condição desde a infância e aprendi que a forma de combater os sintomas é tratamento — pra mim, a terapia e a rotina foram salvadoras.
Porém, o fogão em chamas ativou novamente sintomas antigos que deixam difícil de ter uma rotina funcional: voltei a ter dificuldade de sair de casa, a ter a impressão de que um desastre iminente e maior estava prestes a acontecer. Em 2024, quando saía de casa, precisava voltar pelo menos uma vez pra conferir se os vidros das janelas realmente estavam fechados porque eu tinha medo que meus gatos roessem a tela e se jogassem do quarto andar. Quando os sintomas estavam muito ruins, eu tinha vontade de chorar e precisava de quase 20 minutos, depois de completamente vestida e pronta pra sair, até me convencer que estava tudo bem sair de casa. Muitas vezes precisei engolir o choro enquanto trancava o portão de acesso do prédio, ignorar a tensão no meu corpo e ir até a parada de ônibus.
A hipervigilância pode, sim, ser uma aliada, porque ela é um mecanismo de defesa. No entanto, quando ela sai do controle, ela afetou meu dia a dia e minha capacidade de ser funcional — estar sempre atento e preocupado é cansativo.
Foi difícil negociar com a minha própria mente e treinar ela pra entender que, independentemente da presença de pensamentos catastróficos, o que tiver de acontecer, vai acontecer. Tento me lembrar que não posso controlar tudo e que minha presença em determinado lugar ou atenção a algum detalhe não implica que conseguirei impedir desgraça nenhuma de acontecer.
Em algumas épocas, a atenção a barulhos e movimentações fica, mas os pensamentos catastrófico diminuem. Aos poucos, a cada vez que retorno pra casa e vejo que nenhuma parte do prédio desabou, que ninguém invadiu o apartamento e que os gatos estão esperando na porta quando chego em casa, minha tensão e preocupação excessiva se abrandam. Agora, um mês depois do incêndio e depois de comprar um fogão novo, me sinto mais confiante pra enfrentar imprevistos — apesar de ainda fazer exercícios de respiração no transporte público.
Caso você se identifique com os sintomas que eu trouxe no texto, procure ajuda profissional. O acompanhamento com um terapeuta pode ajudar muito a reduzir os sintomas de hipervigilância.
Bom, esse foi o primeiro post do quadro namarinando, o que acharam?
Nos vemos na próxima!
Utilidade pública, pois eu também jogaria água??
Queria que jogar água pudesse desativar esse survival mode também; viver em constante estado de alerta e preocupação é extremamente cansativo - a rotina, como você escreveu, é sempre um ponto de ancoragem, onde eu me escoro e conto até dez e (impossível deixar isso de lado) faço os exercícios de respiração. Um dia de cada vez, um pão de cada vez. Amei!!